Foto: Pietro Carpi / E.C. Vitória
Bom de Bola, com William Tales SilvaColunistas

O dia em que o futebol foi (ou deveria ter sido) secundário no Barradão

A coluna de hoje é só um desabafo. Em dias comuns, estaria aqui dissertando sobre a importante e merecida classificação do Vitória contra o Jacuipense, mas hoje não é um dia comum, infelizmente. Antes de mais nada, faço questão de ressaltar que isso não é uma crítica ao Vitória, tampouco ao Jacuipense. É uma questão maior, que abrange todo futebol nacional.

Feito esse  disclaimer, sou obrigado a admitir que nunca estive em um estádio tão desinteressado no desenrolar da partida. Olha que o jogo era muito importante, valia vaga na Copa do Nordeste e cerca de dois milhões de reais. Não é pouca coisa. Ainda assim, fora dali, em Brasília, estava acontecendo algo muito maior, que poderia repercutir na vida de cada um dos 11.760 torcedores presentes. 

Os atos antidemocráticos e criminosos na capital federal tiveram início pouco antes do apito inicial para Vitória e Jacuipense. A notícia sobre a invasão do Supremo Tribunal Federal mal havia chegado quando o hino estadual da Bahia tocou no Barradão um jamais tão oportuno “com tiranos não combinam brasileiros corações”. Nas redes sociais, vi pipocarem capturas de tela de grupos extremistas com dizeres como “1964 está se repetindo”, em tom de comemoração, e “espero que a gente consiga vencer como em 64”.

De repente, me vi pensando: “temos, no futebol, quem nos represente?”. Temos um Reinaldo, ídolo atleticano que comemorava seus gols com punho cerrado em plena ditadura? Temos algum clube postulante à sucessão da Democracia Corintiana? Temos um ídolo nacional capaz de recusar um chamado da Seleção como forma de protesto, como fez Pelé em 1974? Infelizmente, para todas as perguntas, creio que a resposta seja ‘não’.

Sinto – e faço questão de enfatizar o verbo utilizado, porque isso se trata de uma percepção individual minha, e não de um fato comprovado – que o Brasil adotou, conscientemente ou não, a mentalidade do “escola sem partido”, que foi um projeto de lei contra “a contaminação político-ideológica das escolas brasileiras”. Grosso modo, esse projeto tentava coibir os professores de opinarem em sala de aula. E o que se viu a partir daí, nos mais diversos setores profissionais, foi o crescimento de uma intolerância a tais opiniões.

Intolerância essa que não parte somente de uma discordância argumentativa, que é comum nas democracias, mas principalmente de um questionamento sobre a legitimidade da opinião do outro. Quando o projeto estava em pauta, por exemplo, isso surgia em colocações como “você [professor] é pago para ensinar, não para dar opinião”. Incômodos semelhantes devem estar atormentando alguns dos leitores dessa coluna, que virão me sugerir que “fale só sobre futebol”.

Para estes, já me antecipo e informo que não vou falar só sobre futebol. Afinal, futebol também é política. Quer exemplos? Duas Copas do Mundo não foram realizadas por motivos políticos. Maradona se tornou “Dios” na Argentina após vencer a Inglaterra graças a uma questão política entre os países. Muitos atletas e artistas boicotaram o Mundial do Catar por razões políticas. O holandês Johan Cruyff, maior ídolo da história do país, abdicou da sua segunda e última chance de defender sua nação em Copas por causa de política. O Mundial de 2006 foi um marco no sentimento patriótico alemão em função de traumas políticos do passado. Entre outros mil exemplos. Tudo é política.

Dito isso, lamento e muito o rumo apolítico que o nosso futebol está tomando. Um verdadeiro “futebol sem partido”, sem ideologia e sem opinião. Nossos principais atletas cada vez mais se afastam dos torcedores, seja pela blindagem das assessorias ou pelas transferências precoces para a Europa, e também da realidade do nosso país, vivendo em bolhas de glamour, luxo e fama, usando muito pouco ou quase nada do status que alcançaram para defender e se posicionar por aqueles que mais precisam. Ressaltando sempre que para toda regra existe exceção e, neste caso, faço uma menção honrosa ao atacante Richarlison, que não é o único a se posicionar, mas é o mais proeminente e o mais bem sucedido dentro de campo.

Também não vou ser insensível e fingir que não entendo a decisão de muitos deles de não se manifestarem. Como disse, a mentalidade apolítica e a polarização dominaram nosso país e, hoje, ter opinião significa cativar uma metade e ser apedrejado por outra. É um caminho arriscado para se seguir. Além disso, a grande maioria dos nossos jogadores não teve a oportunidade de desenvolver um pensamento crítico na escola e carece de instrução para se posicionar nesse debate.

Ainda assim, faz falta. Sócrates faz muita falta. Há tempos não temos um ídolo no futebol que seja referência dentro e fora de campo. É uma lacuna aberta e com pouca concorrência. De fato, o oito de janeiro passou batido para o futebol brasileiro – com raras e honrosas exceções, como o Bahia, que se posicionou a favor da democracia – e é espantoso que tenha sido dessa forma. Fica o alento apenas do posicionamento da CBF contra o uso da camisa da Seleção em atos antidemocráticos e vândalos. É o mínimo. Se nem a nossa camisa pode nos representar, quem poderá?

Nesse vácuo de referências, coube às próprias torcidas a responsabilidade de marcar posição na história. Em São Paulo, por exemplo, as organizadas dos quatro grandes se uniram em uma manifestação contra os atos antidemocráticos e criminosos deste domingo. Um apelo por democracia e por representatividade.

por William Tales Silva
Últimos posts por por William Tales Silva (exibir todos)