Foto: Kamille Rosso Matias / Criciúma E.C.
Bom de Bola, com William Tales SilvaColunistas

Quando foi que normalizamos a hostilidade?

A terceira parada da minha turnê por estádios foi em Criciúma, para assistir ao clássico entre o tricolor carvoeiro e o Avaí, no Heriberto Hülse, na sexta-feira (28). Acostumado a assistir diferentes clássicos de todos os cantos do país pela televisão, já tinha uma expectativa em torno da atmosfera do estádio para essa partida: clima quente, gritos de guerra e aquela tensão no ar típica das grandes rivalidades nacionais, como manda a cartilha.

De fato, não faltou apoio dos donos da casa, que preencheram 15 dos 19 mil lugares disponíveis no Majestoso. Foram noventa minutos de cantoria d’Os Tigres, com adaptações de sucessos como “Você partiu meu coração” e “Anunciação” – repertório curioso visto que as Barras, como se define a organizada do Criciúma, costumam priorizar o cancioneiro sul-americano em detrimento às músicas nacionais.

Porém, mesmo com tanto apoio, custei a sentir a “atmosfera do clássico” e comecei a me perguntar o que faltava para compor esse cenário. Eis que a resposta me veio como um soco no estômago: faltava hostilidade. Faltava a sensação de qualquer pessoa cuja vestimenta não correspondesse integralmente à paleta de cores do tricolor carvoeiro não era bem-vinda – ou coisa pior. Faltava empenho para demonstrar que a raiva pelo adversário é tão grande quanto o amor pelo próprio clube. Afinal, pra quê apoiar seu time do coração se você pode insultar e humilhar seu rival com os cânticos mais pesados e intimidadores possíveis?

Hostilidade essa que afastou as famílias dos estádios e que possibilitou a epidemia de “torcidas únicas” nos clássicos pelo país. O sentimento de ódio que muitas torcidas transpiram durante os derbies acaba por gerar toda uma sensação de insegurança que, por vezes, se converte, de fato, em violência física. Mas, felizmente, nada disso estava presente no Heriberto Hulse. 

No lugar dessa tensão, estavam famílias. Muitas. Pais, mães e crianças. Acompanhei a chegada dos torcedores e não vi nenhum semblante minimamente preocupado. Todos ali estavam indo curtir um momento de lazer num sábado. Tal qual uma ida à sorveteria ou ao cinema. Por que teriam medo? Errados somos nós que pensamos o contrário.

Antes que apontem isso como “falta de amor ao clube”, “falta de energia da torcida” ou qualquer outra incongruência argumentativa – visto que ninguém precisa ser hostil como torcedor para demonstrar energia ou amor ao clube – reafirmo que não faltou apoio da arquibancada. 

O Criciúma abriu o placar do jogo ainda no primeiro tempo, ficou com um homem a mais, mas não conseguiu matar a partida, deixando a reta final do clássico bastante aberta. Nessa hora, mais do que nunca, a vantagem tricolor pesou. Não a vantagem numérica dentro de campo, mas na arquibancada. Os Tigres jogaram juntos com o time e têm uma boa parcela de mérito nessa vitória importante.

Não vou ser hipócrita e fingir que a torcida não entoou cânticos pesados ou provocativos ao longo do jogo, mas eles foram muito menos frequentes do que os cantos de apoio ao próprio clube – que são os mais importantes, afinal! 

Além da chegada, vi também a saída do público e em alguns momentos torcedores rivais se encontraram e nada aconteceu além de uma piadinha ou outra com o resultado, num tom ameno, como tem que ser. Muitos torcedores voltaram para casa a pé, inclusive. Certos da segurança do evento (e da cidade). 

Eu me espantei com a civilidade. E, assim que percebi, me espantei com meu próprio espanto. Afinal, pergunto mais uma vez, na ânsia por uma resposta: quando foi que normalizamos a hostilidade?

  • William Tales Silva, Jornalista. Repórter de esportes da TV Band Bahia. Autor do livro “[VAR] – A história e os impactos da maior mudança na aplicação das regras do futebol”, o primeiro sobre o árbitro de vídeo no Brasil, pela editora Footbooks/Corner. Já foi apresentador do Jogo Aberto da BandNews FM Salvador e teve oportunidades como apresentador do Jogo Aberto Bahia e comentarista da Série C do Brasileirão na TV Band Bahia.
por William Tales Silva
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