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Bom de Bola, com William Tales SilvaColunistas

Dinamarca constrange a FIFA mais uma vez – e não é pra menos!

Antes de mais nada, é preciso dizer que a Copa do Mundo sediada no Catar é uma vergonha. Não há outra palavra. A começar pela candidatura. Antes de tentar sediar o mundial, o país já havia pleiteado a realização das Olimpíadas de 2016 e foi rejeitado porque, segundo o COI, seria inviável realizar um evento no verão catari, que sofre com altíssimas temperaturas e altos índices de umidade. 

Essa questão também era um problema para a FIFA (que aprovou o país mesmo assim) porque a manutenção da Copa em junho e julho era uma exigência da entidade. Nos primeiros anos após ter sido escolhido como sede, o Catar até investiu em pesquisas para desenvolver “nuvens artificiais” para gerar sombra e reduzir o calor durante as partidas, mas, em 2015, a mudança para novembro foi confirmada, porque o país não poderia oferecer essa tecnologia em todos os ambientes necessários, como centros de treinamento, fan fests e ruas das cidades.

Não é preciso perder muito tempo especulando o motivo para tanta flexibilidade com a Copa de 2022 visto que, ainda em 2014, uma investigação com mais de 200 mil páginas de evidências concluiu que cartolas agiram de forma ilegal na escolha do Catar como sede do mundial e pediu punições. Aliado a isso, o orçamento declarado de pelo menos 27 bilhões de reais para a realização do torneio, na pratica, gira em torno de 800 bilhões. Até então, a Copa mais cara da história havia sido a da Rússia, em 2018, que custou aproximadamente 50 bilhões de reais, em valores corrigidos.

Como se não bastasse a corrupção comprovada, o país também é institucionalmente homofóbico. Por lá, a homossexualidade é ilegal e, segundo o Observatório dos Direitos Humanos, pessoas LGBTQIA+ são detidas e maltratadas no Catar arbitrariamente. A organização entrevistou seis pessoas LGBTQIA+ que vivem no país e todos afirmaram que já foram detidos entre 2019 e 2022, sendo submetidos a abusos físicos e verbais, incluindo chutes e socos. Além disso, todos os seis foram forçados a assinar um documento prometendo que iriam cessar a “atividade imoral”.

Declarações homofóbicas tem sido dadas à revelia por representantes nacionais desde a escolha da sede. Destaco duas delas. Recentemente, o ex-jogador do Catar e embaixador da Copa, Khalid Salman, disse à TV alemã ZDF que os homossexuais “têm que aceitar as nossas regras aqui” e que a homossexualidade seria um “problema mental”. Já o major-general Abdulaziz Abdullah Al Ansari, que ocupa o mais alto cargo nas forças de segurança do país, disse à agência de notícias Associated Press que não é possível garantir a segurança da comunidade LGBTQIA+, embora ela seja bem-vinda – desde que evite símbolos identitários como a bandeira do arco-íris. 

Al Ansari completa dizendo que “se um torcedor levantou a bandeira do arco-íris e eu a peguei dele, não é porque eu realmente quero insultá-lo, mas sim para protegê-lo. Porque se não for eu, alguém ao redor dele pode atacá-lo. Não posso garantir o comportamento de todo o povo. E eu direi a ele: ‘por favor, não há necessidade de levantar essa bandeira neste momento'”. 

A postura dos principais representantes nacionais do torneio contradiz o aceno recente da FIFA à comunidade LGBTQIA+, permitindo as bandeiras do arco-íris, beijos homoafetivos e manifestações no país. A agência de notícias Bloomberg teve acesso a um documento da FIFA que orienta o policiamento catari a deixar os manifestantes em paz, a menos que criem um “problema de segurança”, recomendando ainda “menos intervenção, mais mediação” e a prática da “leniência em relação a comportamentos que não ameacem a integridade física ou a propriedade”. A ver.

Como se não bastasse a corrupção comprovada e a homofobia institucionalizada, também existem muitas queixas sobre o desrespeito aos direitos humanos nas obras para a Copa, principalmente em relação às condições climáticas desumanas durante a jornada de trabalho. Um estudo da Universidade de Tessália com trabalhadores dessas obras e agricultores concluiu que esses empregados passam 40% dos seus turnos em condição de hipertermia limítrofe ou hipertermia entre os meses de junho e julho. 

Ainda em 2013, a Confederação Sindical Internacional estimou que até quatro mil trabalhadores imigrantes poderiam morrer nas obras do Catar até 2022. Perguntado pelo site The Athletic sobre isso, o chefe do Comitê Supremo do país, órgão responsável por organizar o mundial, Al Thawadi, afirmou que “não seria capaz de dizer se esse número está próximo da realidade ou não”, após rechaçar a possibilidade de que essas quatro mil mortes seriam registradas apenas em obras da Copa. Em 2021, o jornal The Guardian publicou uma matéria afirmando que o número de imigrantes mortos nas obras do país já passava de 6500.

Apesar dos vários motivos para um boicote global à Copa do Catar, nenhuma seleção chegou tão longe assim nas críticas. A Noruega chegou a realizar um congresso extraordinário para discutir a pauta, que acabou sendo rejeitada. Porém, vale a menção honrosa para a Dinamarca. A seleção lançou três kits monocromáticos para a Copa, nas cores vermelha, branca e preta. Em todos eles, o escudo da seleção e a marca da fornecedora esportiva Hummel são quase invisíveis. No anúncio do uniforme, a Hummel disse que “nós não queremos ser visíveis durante um torneio que custou milhares de vidas”. Pouco, mas o suficiente para levantar boas reflexões durante o mundial – e foi o máximo feito por alguma seleção até aqui, diga-se.

Além disso, a Hummel ainda propôs um uniforme de treino para a Dinamarca com mensagens favoráveis aos direitos humanos nas costas, ideia que foi proibida pela FIFA nesta quinta-feira (10). A entidade proíbe manifestações políticas em suas competições e chegou a emitir uma carta aberta às seleções pedindo para que “não entrem em todas as batalhas político-ideológicas que existem” e afirmando que “tenta respeitar todas as opiniões e crenças, sem dar lições de moral para o resto do mundo”.

A neutralidade não existe e até a FIFA sabe disso, pois já lançou campanhas contra o racismo e baniu a seleção russa de todas competições por causa da guerra contra a Ucrânia. Isso é posicionamento político-ideológico. Algumas pautas transbordam – ou pelo menos deveriam transbordar – a tal imparcialidade, pois são questões de humanidade, tais como o racismo, a paz, os direitos humanos e o respeito à comunidade LGBTQIA+.

Defender alguns desses tópicos em detrimento de outros também é um posicionamento. É uma forma de ranquear quais lutas valem ou não o apoio da entidade. Esse ranking não deveria existir. Uma vivência saudável em sociedade depende da coexistência de todas essas – e muitas outras – pautas. 

Encerro essa coluna com uma declaração do próprio Gianni Infantino, presidente da FIFA, responsável por essa infeliz carta-aberta: “Nelson Mandela disse que o esporte pode mudar o mundo, que o esporte inspira e une as pessoas, e ele estava certo. E o futebol, como esporte mais popular do planeta, tem um alcance único”. Para quem tenta podar esse alcance, resta o lixo da história.

  • William Tales Silva, Jornalista. Repórter de esportes da TV Band Bahia. Autor do livro “[VAR] – A história e os impactos da maior mudança na aplicação das regras do futebol”, o primeiro sobre o árbitro de vídeo no Brasil, pela editora Footbooks/Corner. Já foi apresentador do Jogo Aberto da BandNews FM Salvador e teve oportunidades como apresentador do Jogo Aberto Bahia e comentarista da Série C do Brasileirão na TV Band Bahia.
por William Tales Silva
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